sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 - Anencefalia

Retornou à mídia a discussão sobre a interrupção terapêutica do parto, em caso de feto anencéfalo. Entretanto, observa-se inúmeras informações errôneas e falsas sobre o tema, principalmente nos canais televisivos, razão pela qual resenhei o assunto, participá-los das questões relevantes:


  • Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF: ação constitucional prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal de 1988 e regulamentada pela Lei nº. 9.882/99. Objetiva "evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público", "assim como quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição".


  • Requisitos: o não cabimento de outro remédio constitucional e a especificação na petição inicial do preceito fundamental descumprido acrescida da prova de sua violação.


  • Preceitos fundamentais: José Afonso da Silva dispõe que não é sinônimo de "princípios fundamentais", sendo a primeira mais abrangente. Sarmento, por sua vez, vê o preceito fundamental como conceito jurídico indeterminado, ou seja, um verdadeiro topoi. Na Argüição em comento, Barroso menciona que:


"[...] na questão aqui posta os preceitos fundamentais vulnerados são: o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), uma dos fundamentos da República Brasileira; a Cláusula geral de liberdade, extraída do princípio da legalidade (art. 5º, II), direito fundamental previsto no Capítulo dedicado aos direitos individuais e coletivos; e o direito à saúde (arts. 6º e 196), contemplado no Capítulo dos direitos sociais e reiterado no Título reservado à ordem social. (negrito meu) "


  • Conteúdo da ADPF nº 54: nela distinguem-se os termos aborto ao da antecipação terapêutica do parto, pretendendo com isso, demonstrar que a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia fetal situa-se no âmbito da medicina e do senso comum, diferentemente da cessação voluntária da gravidez de concepto viável. Porquanto a adoção de preceitos constitucionais afastaria a aplicação das sanções legais impostas aos profissionais de saúde dispostas nos artigos 124, 126 e 128 I e II do Código Penal, nos casos de atestada anencefalia fetal.

O pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do código Penal como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo, reconhecendo-se o direito desta gestante de se submeter ao procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.


  • Acompanhamento Processual – STF: em despacho publicado em 14.08.2008, o Ministro Marco Aurélio determinou a ocorrência de três audiências públicas, de sorte a ouvir "entidades e técnicos não só quanto à matéria de fundo, mas também no tocante a conhecimentos específicos a extravasarem os limites do próprio Direito", realizadas:

a) 26 de agosto de 2008: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; Igreja Universal; Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e Católicas pelo Direito de Decidir.


b) 04 de setembro de 2008: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero - ANIS; Associação de Desenvolvimento da Família – ADEF; Escola de Gente e Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.


c) 28 de agosto de 2008: Conselho Federal de Medicina; Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia; Sociedade Brasileira de Medicina Fetal; Sociedade Brasileira de Genética Clínica; Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e, por último, o Deputado Federal José Aristodemo Pinotti.


  • Anencefalia: usualmente conhecida como ausência de cérebro, é a "malformação caracterizada pela ausência do encéfalo e incompatível com a sobrevida superior de algumas horas" (LAROUSSE, 1988, p.298), em entendimento mais recente, os Doutores Gherardi e Kurlat explicam que a anencefalia:

É uma alteração na formação cerebral resultante de falha no início do desenvolvimento embrionário do mecanismo de fechamento do tubo neural e que se caracteriza pela falta dos ossos cranianos (frontal, occipital e parietal), hemisférios e do córtex cerebral. O tronco cerebral e a medula espinhal estão conservados, embora, em muitos casos, a anencefalia se acompanhe de defeitos no fechamento da coluna vertebral. Aproximadamente 75% dos fetos afetados morrem dentro do útero, enquanto que, dos 25% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana.

Na anencefalia, a inexistência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex) provoca a ausência de todas as funções superiores do sistema nervoso central. Estas funções têm a ver com a existência da consciência e implicam na cognição, percepção, comunicação, afetividade e emotividade, ou seja, aquelas características que são a expressão da identidade humana. Há apenas uma efêmera preservação de funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal. Esta situação neurológica corresponde aos critérios de morte neocortical (high brain criterion), enquanto que, a abolição completa da função encefálica define a morte cerebral ou encefálica (whole brain criterion).

A viabilidade para a vida extra-uterina depende do suporte tecnológico disponível (oxigênio, assistência respiratória mecânica, assistência vasomotora, nutrição, hidratação). (grifo próprio)


Nos termos do sobredito, o bebê anencéfalo nascerá sem qualquer possibilidade de ter uma vida relacional, uma vez que não possui consciência, afetividade ou emotividade, restando tão somente algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Logo, nasce apenas um ser vegetativo.


  • Possibilidade de Vida: percebe-se que tal anomalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em todos os casos, não havendo qualquer controvérsia na literatura científica ou na experiência médica. Havendo, porém, relatos esparsos sobre bebês anencéfalos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno.


  • Caso Marcela de Jesus Ferreira: (de 20 de novembro de 2006 – 01 de agosto de 2008) nascida com apenas parte do encéfalo, serviu de exemplo para corroborar a hipótese de um bebê anencéfalo sobreviver após o parto. Entretanto, Marcela não deve ser considerada como um bebê anencéfalo, ao menos não de modo genérico, haja vista seu tronco cerebral realizar algumas funções, levando a crer que ela possui encefalocele, ou seja, outro tipo de má formação fetal, conforme reportagem publicada em 15/11/2007 in
    O Estado de São Paulo. São Paulo, abaixo transcrita :


Foi preciso quase um ano para esclarecer um diagnóstico polêmico: Marcela de Jesus Ferreira, nascida há quase um ano em Patrocínio Paulista, SP, não é um exemplo de bebê anencéfalo - fetos que não desenvolvem o cérebro e, por isso, têm uma condição incompatível com a vida fora do útero, sobrevivendo por algumas horas ou, no máximo, alguns meses. A afirmação foi feita ontem ao jornal O Estado de S. Paulo pela própria médica que acompanha a criança, a pediatra Márcia Beani Barcellos. A médica afirma que a menina "não tem anencefalia clássica", mas "outro tipo de anencefalia".

"Ela é um bebê sem encéfalo, essa região do cérebro dela está preenchida por líquido, mas não é um exemplo da anencefalia descrita na literatura médica porque ela, de alguma maneira, ainda interage com a mãe, interage com o ambiente, seu tronco cerebral realiza funções. Um caso clássico da má-formação não teria sobrevivido por tanto tempo ou estaria vegetando, o que não é o caso dela desde que nasceu", afirmou.

A primeira ressonância magnética com boa definição, feita somente anteontem, a seis dias do primeiro aniversário da menina, mostrou a presença de mesencéfalo, parte intermediária do cérebro que, para especialistas, é o principal indicativo ou prova de que o bebê não é um anencéfalo.

"Até que enfim reconheceram que não é anencefalia. O diagnóstico foi uma atitude política, que não visou à informação adequada, mas atender a interesses da Igreja de dizer que é possível que um anencéfalo sobreviva e que não se deve fazer aborto", afirmou o coordenador do Programa de Medicina Fetal e Imunologia da Reprodução da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Ricardo Barini. A reportagem não conseguiu encontrar um representante da Igreja ontem para comentar o caso e as declarações do médico.

Para Barini, tudo indica um outro tipo de má formação, a encefalocele (defeito no fechamento do crânio), associada a uma microcefalia, redução do tecido nervoso. O médico já vinha apontando problemas no diagnóstico. Havia afirmado em juízo, em junho, que o caso de Marcela não era de anencefalia. Barini foi chamado a se manifestar como especialista em uma ação para que fosse autorizado o aborto a uma enfermeira de Campinas, grávida de uma criança com anomalia cromossômica incompatível com a vida e que poderia trazer riscos para a mãe. O Ministério Público de São Paulo havia pedido mais justificativas para o aborto, baseado na informação de que Marcela sobrevivia havia sete meses sem cérebro, o que protelou o procedimento. (grifo próprio)


Espero que todo o sobredito sirva para esclarecê-los sobre a ADPF54, tendo em vista que não tratamos apenas da "vida" do feto, mas também de todo o sofrimento e desgaste suportando pela mulher, enquanto gestante, que se vê obrigada a suportar 9 meses de tortura. Ademais, não entendo que seja obrigação da mulher interromper a gestação em caso de anencefalia fetal, mas sim um direito seu poder escolher.


Por fim, esclareço que existem muitas outras questões a serem suscitadas, como: os riscos da gestação; a interferência religiosa em um Estado laico; manipulação de mídia; dentre outros. Por isso, deixo o espaço aberto a discussões, sejam quais forem os seus posicionamentos.

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